A Família de Nazaré

Hoje a igreja celebra a festa da Sagrada Família. No entanto, o Evangelho apresenta-nos a realidade de uma família profundamente humilde, sempre em apuros e exposta a todo tipo de agruras e diabruras (cf. Mt 2,13-15.19-23). É importante reconhecer que uma vida de santidade é tecida com os fios da realidade nem sempre colorida, previsível e razoável. Que ninguém se iluda com as bolhas de sabão, pois “é no fogo que o ouro e a prata são provados e, no cadinho da humilhação, os que são agradáveis a Deus” (cf. Eclo 2,1-6).   

A Sagrada Família de Nazaré certamente foi santa e exemplar em muitos aspectos, mas não foi uma família idílica e sem fazer perigosas travessias. O evangelho atesta que por questão de sobrevivência da criança, Maria e José tiveram de fugir; em outra ocasião Maria repreendeu Jesus: “Filho, por que você fez isso conosco! Eis que seu pai e eu estávamos angustiados, estávamos procurando por você”. E Jesus respondeu secamente: "Não sabiam que eu devo cuidar das coisas do meu Pai". Dá para imaginar a perplexidade de José e de Maria. 

Marcos narra que num determinado dia os parentes e familiares de Jesus foram buscá-lo porque corria a ideia de que ele era um doidivanas. Tratam-se de episódios que retratam a dura realidade de uma família como tantas outras, com suas alegrias e incompreensões, com suas experiências incríveis e com o enfrentamento de crises e de perigos sem conta. Lamentavelmente, foi-nos transmitido uma imagem celestial da família de Jesus que não corresponde aos fatos. 

A família ade Nazaré não era muito diferente das nossas famílias; pensando bem, era muito estranha: a mãe ficou grávida sem saber como explicar; um pai que que desapareceu (onde foi parar José, no evangelho?); um filho “misterioso” e incompreensível, subversivo e revolucionário para todos os tempos e lugares; uma família de refugiados políticos no Egito. Se não for "anômala" a história desta família, o que seria? A família de Nazaré, portanto, não era um microcosmo recheado só de bondade, de doçura e de amor, impassível às contradições humanas.

Às vezes vemos famílias que por fora parecem o céu aqui na terra, o símbolo da perfeição. Parece que todos se amam, que todos estão felizes, que está tudo está nos conformes. Mas nem tudo o que reluz é ouro. No Evangelho há uma frase tremenda: "Ai de vós quando todos falarem bem de vós” (cf. Lc 6,26). Mal-entendidos, crises, conflitos, "resmungos", escolhas não compreendidas são normais em uma família. Não somos anjos! 

Na família de Nazaré havia apenas três (nós veneramos os três como santos e eles são de fato!). E, no entanto, quantas dificuldades enfrentaram! Por que devemos ter a presunção de ser mais santos do que eles? Por que devemos estar isentos dos aperreios e das surpresas desagradáveis da vida? “Mas há a vida que é para ser intensamente vivida. Há o amor. Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata” (Clarice Lispector). 

A família não é o lugar da perfeição, dos sorrisos fáceis e gratuitos, lugar “onde todos falam bem de nós e reverenciam o nosso nome”. A família é sim o lugar onde podemos aprender a ser gente e a amar ainda que de modo parcial porque tudo o que é humano traz a marca indelével da incompletude e da imperfeição. Mas é também tremendamente belo, intenso, importante que só quando ela nos faltar enxergamos o seu valor. 

Efetivamente, somos pulverizados diuturnamente pela mídia corporativa por avalanches de noções fetichizadas acerca da instituição família, onde parece não pairar espaço para imperfeições, infelicidade e defeitos, quando não esvaziada por conceitos/modismos que vão na contramão do evangelho. Às vezes, determinados modelos de família são exibidos tão modelares e idealizados a ponto de despertar nos expectadores a curiosa indagação: “Cáspita, como conseguiram?". Eis o nó górdio: no reino da criação nada há de perfeito, mas apenas perfectível.

Há uma história que fala de um homem que guardava esqueletos humanos num armário. Durante o dia não havia problemas, mas à noite esses esqueletos ganhavam vida e saíam para atormentar e atazanar o juízo de todos. Quando amanhecia e a luz do dia despontava voltavam para o guarda-roupa. Isso aconteceu por muito tempo até que numa determinada noite eles amarraram aquele homem e o trancafiaram no armário. Os esqueletos continuaram presentes, mas agora fora do guarda-roupa e nunca mais voltaram para lá. Enquanto que aquele infeliz morreu e apodreceu dentro do guarda-roupa, assumindo o lugar dos esqueletos. É uma história bastante tétrica, mas muito real: é o que às vezes acontece em muitas das nossas famílias.

Num dos seus notáveis pronunciamentos sobre a família o Papa Francisco afirmou que “não devemos esperar que a família seja perfeita para cuidar de sua vocação e incentivar sua missão”. A família é sempre um projeto artesanal. Como amigo mais velho e experimentado, adverte: “Devemos proteger a família, mas não aprisioná-la. Devemos ter cuidado com as ideologias oportunistas que se intrometem para explicar a família... A família não é uma ideologia, mas uma realidade” viva que cresce e se vitaliza com os pés firmes na realidade e com “os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé” (cf. Heb 12,2). 

Obrigado Pai santo, Senhor do céu e da terra, por santificar a Família, de modo perene e definitivo, ao encarar-se no seio da Virgem e tê-la plasmado com o dom do Espírito para que se tornasse digna habitação do Vosso amado Filho Jesus, Nosso Senhor. Evviva la Famiglia!  

 
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